Pela primeira vez na história, em 2023 a carruagem que leva o Caboclo no cortejo do 2 de Julho foi inteiramente desmontada. A peça, assim como a que leva a Cabocla, passou por uma restauração completa, para ficarem à altura da data tão especial: a celebração de 200 anos da Independência do Brasil na Bahia. O trabalho é comandado pelo artista plástico José Dirson Argolo, professor da Escola de Belas-Artes da Universidade Federal da Bahia (Ufba). Há mais de 25 anos ele é escolhido pelo Instituto Geográfico e Histórico da Bahia (IGHB) para realizar, anualmente, o serviço de preservação das imagens.
Quem entra no Studio Argolo, localizado no Garcia, tem o privilégio de se deparar com uma cena rara: o Caboclo e a Cabocla, tão marcantes para a iconografia baiana, nus. Ou seja: sem cabelo, cocar, penas, braceletes, colares, sem toda a indumentária clássica com a qual vão às ruas no 2 de Julho. O dragão, que representa a tirania portuguesa e que é pisoteado na escultura, está separado, bem longe dos pés do Caboclo, como sempre é visto. A armadura ladeada por canhões, que enfeita a parte frontal da carruagem, também está solta, num outro canto da sala.
Segundo José Dirson, por conta do tamanho e da complexidade das esculturas, os serviços de preservação sempre foram realizados anualmente com a carruagem montada e dentro do Pavilhão do 2 de Julho, na Lapinha. Porém, em 2023, o local está sendo reformado pela Prefeitura de Salvador para se tornar um memorial – o que obrigou a retirada da carruagem de lá. O artista plástico, então, aproveitou a deixa para desmontar a peça pela primeira vez na história e realizar uma restauração mais profunda. “O veículo foi para a garagem da Guarda Municipal, na San Martin. Já as imagens e acessórios vieram para o ateliê”, conta.
Separada do dragão e da carruagem, a imagem do Caboclo tem tamanho real de um humano, com cerca de 1,75 metro de altura, fora a grande haste de ferro maciço que sai do pé esquerdo e que faz o conjunto passar dos dois metros de altura. A Cabocla é bem menor e não tem haste. Ambas são feitas de madeira do tipo cedro coberta por gesso esculpido. As duas esculturas trazem expressões neutras, como as que se veem nas imagens sacras. Os músculos são vigorosos num tom de pele escuro e apenas um saiote foi esculpido em cada um como roupa.
Restauração – As imagens nem sempre foram assim. A primeira grande restauração das duas ocorreu em 1998, na ocasião dos 175 anos do 2 de Julho, também feita por José Dirson. Foi como redescobrir as esculturas originais após séculos. Segundo o artista, foram retiradas mais de 50 camadas de tinta, aplicadas sem qualquer zelo ao longo do tempo, e que acabaram deformando as peças por completo. Sem falar nos inúmeros enxertos de zinco, jornais, buchas e outros materiais usados para tapar buracos na madeira.
Foi há 25 anos que se descobriu, por exemplo, que os olhos do Caboclo e da Cabocla são de vidro, algo que ficou escondido sob camadas de tinta durante décadas. Resgatou-se, portanto, as esculturas originais, exatamente como foram elaboradas no Século XIX. Desde então, a equipe de José Dirson vinha realizando anualmente a preservação das imagens.
Em 2023, com a oportunidade de desmontá-las pela primeira vez, foi possível um restauro mais profundo, focado na estrutura das obras. Como, por exemplo, na haste que prende o Caboclo ao dragão e à carruagem, que nunca tinha sido acessada. O dragão estava com a madeira quebrada em vários pontos, e foi preciso consolidá-la, entre outras intervenções.
“Essas peças são do Século XIX. O Caboclo da década de 20 e a Cabocla de 40. Ou seja, são quase 200 anos deles também. Tudo isso sai em movimento pelas ruas, balançando, pegando buraco e ladeira íngreme. Depois, ficam três dias expostos no Campo Grande num período de chuva. E eles são de madeira, ou seja, quando molha, tudo isso dilata e depois retrai criando rachaduras. Por isso, esse trabalho de restauração é tão importante”, explica Cláudia Barbosa, restauradora do Studio Argolo.
Esculturas – Há uma divergência em relação à autoria e à data de criação do Caboclo. Ele teria sido criado em 1826 por Manoel Ignácio da Costa ou em 1828 por Bento Sabino dos Reis. O fato é que a carruagem como um todo foi montada a pedido da Sociedade Patriótica 2 de Julho, que à época organizava o cortejo, para manter o costume iniciado em 1824, quando a população desfilou da Lapinha ao Terreiro de Jesus acompanhando um homem de ascendência indígena sobre uma carroça de canhões, que fora apreendida do exército português, ornamentada com plantas.
“O carro alegórico foi concebido com rodas de carroças que levavam canhões portugueses, e que ainda hoje estão na carruagem. De cada lado, temos dois bacamartes (espingardas) também originais, apreendidas dos inimigos. Na parte superior, um caboclo que, com uma lança, acerta um dragão, representando os portugueses vencidos. Na frente do carro, temos uma armadura com elmo, representando um troféu de batalha. Além disso, dois anjinhos na frente anunciando a vitória, além de pequenos bustos e dísticos homenageando heróis de guerras”, descreve José Dirson.
Já a Cabocla é de 1846, de autoria de Domingos Pereira Baião, e foi criada a pedido do Marechal Andréa, então governador da província da Bahia. Português de nascimento, ele dizia que a imagem do Caboclo esmagando o dragão era hostil à colônia portuguesa e sugeriu a substituição pela imagem de uma mulher representando Catarina Paraguaçu. O povo recebeu muito bem a Cabocla, mas não tolerou que o Caboclo fosse afastado.
“É importante ressaltar que o 2 de Julho não surgiu das autoridades, ele é um cortejo que nasceu do povo. E, até hoje, a participação popular é o que determina os rumos da festa. O Caboclo e a Cabocla, para muita gente, são imagens de devoção. As pessoas se ajoelham diante das imagens e fazem pedidos. Eles ficam três dias no Campo Grande recebendo flores, perfumes e frutas. E a gente sempre encontra muitos bilhetes com pedidos e também agradecimentos pelas graças alcançadas nos anos anteriores”, destaca José Dirson.