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Salvador 475 anos: Como aterros sobre a BaĆ­a de Todos-os-Santos formaram o primeiro bairro comercial planejado do Brasil

Salvador, ainda no processo de formaĆ§Ć£o como primeira capital do Brasil, avanƧou sobre o mar da BaĆ­a de Todos-os-Santos ā€“ chamado de KirimurĆŖ pelos Ć­ndios tupinambĆ”s, habitantes da localidade antes da chegada dos portugueses ā€“ e ampliou sem precedentes o territĆ³rio natural que atĆ© entĆ£o existia apĆ³s uma sĆ©rie de aterros ocorridos no que hoje Ć© o bairro do ComĆ©rcio. Pode atĆ© nĆ£o parecer, mas percorrer essa mesma Ć”rea no sĆ©culo XVI era inviĆ”vel a pĆ©.

Isso porque, no inĆ­cio, praticamente tudo era Ć”gua. Apenas uma modesta faixa de terra seguia paralelamente Ć  encosta que divide as Cidades Alta e Baixa, denominado de Bairro da Praia. Se o nĆ­vel superior viria a abrigar o centro administrativo, religioso e habitacional, o inferior seria o local ideal para construĆ§Ć£o de um porto. As instalaƧƵes serviriam para que os portugueses mantivessem tanto fluxo de viagens com Lisboa quanto posteriormente para o trĆ”fico de escravizados trazidos da Ɓfrica, alĆ©m de dar suporte Ć  chegada de mercadorias e manutenĆ§Ć£o de embarcaƧƵes.

ā€œO Bairro da Praia era muito estreito. Mas, desde o inĆ­cio, os comerciantes perceberam que era interessante ocupar esse territĆ³rio ao mar. Portanto, comeƧa ainda no sĆ©culo XVI, nos primeiros 80 anos de ocupaĆ§Ć£o da cidade, a ter pequenos aterros para abrigar trapiches e armazĆ©ns com atracadouros, onde os barcos paravam e descarregavam mercadoriasā€, explica Nivaldo Andrade, doutor em Arquitetura e Urbanismo e curador de uma mostra sobre o assunto na Casa das HistĆ³rias de Salvador.

A primeira ocupaĆ§Ć£o no local corresponde atualmente ao trecho da ConceiĆ§Ć£o da Praia, com a construĆ§Ć£o da alfĆ¢ndega, armazĆ©ns e ferrarias, alĆ©m de oficinas para a construĆ§Ć£o de navios, que se constituiria em importante atividade nesta Ć”rea durante alguns sĆ©culos.

Ali tambĆ©m seriam erguidos em sequĆŖncia a ermida de Nossa Senhora da ConceiĆ§Ć£o da Praia e dois baluartes para defesa da parte baixa da cidade: um no local onde hoje Ć© o 2Āŗ Distrito Naval e outro ao pĆ© da Ladeira da PreguiƧa, o que demonstrava a preocupaĆ§Ć£o com a seguranƧa mesmo antes da ocupaĆ§Ć£o do territĆ³rio de fato.

Na tese de mestrado em CiĆŖncias Sociais, de 1988, o arquiteto Marcus Paraguassu propƵe a existĆŖncia de oito ciclos de avanƧos de terra sobre o mar da BaĆ­a de Todos-os-Santos a partir de 1550 – ano seguinte Ć  fundaĆ§Ć£o de Salvador pelo governador-geral TomĆ© de Sousa ā€“ atĆ© 1920, que provocaram sucessivas transformaƧƵes urbanas no lugar que se tornaria o principal centro econĆ“mico.

Os primeiros aterros eram privados e visavam a exploraĆ§Ć£o comercial. Contudo, atĆ© o sĆ©culo XIX, o porto da cidade nĆ£o era organizado, mesmo sendo o mais importante do AtlĆ¢ntico Sul no mundo.

Primeiras soluƧƵes de mobilidade

Com o inĆ­cio da ocupaĆ§Ć£o do Bairro da Praia, um dos problemas era encontrar meios que pudessem viabilizar o deslocamento da populaĆ§Ć£o e o vai e vem de mercadorias entre as Cidades Alta e Baixa, que sĆ£o separadas por uma falha geolĆ³gica de aproximadamente 60 metros de altura.

Neste cenĆ”rio, a soluĆ§Ć£o pensada e executada de forma imediata envolveu a construĆ§Ć£o de trĆŖs ladeiras: as da ConceiĆ§Ć£o, PreguiƧa e MisericĆ³rdia. Ao completar um sĆ©culo de sua fundaĆ§Ć£o, em 1649, a primeira capital do Brasil jĆ” contava com algumas outras ligaƧƵes, como a Ladeira do TaboĆ£o.

AlĆ©m da abertura desses caminhos, novas ideias surgiram para viabilizar o transporte de carregamentos entre o porto (Cidade Baixa) e a sede administrativa (Cidade Alta) com a construĆ§Ć£o dos primeiros ascensores, conhecidos como guindastes e que eram, na verdade, planos inclinados administrados por religiosos de diversas ordens. Um dos principais equipamentos a entrar em funcionamento foi o Guindaste dos Padres, da Companhia de Jesus, por volta de 1610, que ficava na atual Ć”rea do Plano Inclinado GonƧalves.

Outros guindastes viriam a surgir durante o perƭodo colonial e impƩrio, com os beneditinos, carmelitas e dos terƩsios. No final do sƩculo XVII, estima-se que Salvador tinha pelo menos seis ascensores deste tipo em funcionamento.

O ComĆ©rcio ainda seria modelo para outros aterros que viriam a acontecer ainda na Cidade Baixa – a PenĆ­nsula de Itapagipe sofreu intervenƧƵes similares e atĆ© de maiores proporƧƵes. A recĆ©m-nascida Ć”rea de negĆ³cios, inclusive, chegou a abrigar mais obras em execuĆ§Ć£o do que a Cidade Alta em alguns momentos, sendo ainda local da vanguarda arquitetĆ“nica com construƧƵes como a sede da AssociaĆ§Ć£o Comercial, no inĆ­cio do sĆ©culo XIX, marco da arquitetura neoclĆ”ssica; ou o Instituto do Cacau, nos anos 1930, um dos mais importantes exemplares da arquitetura moderna na Bahia.

TerritĆ³rio em expansĆ£o

A partir do planejamento de expansĆ£o de territĆ³rio, o trecho entre as igrejas de Nossa Senhora da ConceiĆ§Ć£o e a do Pilar comeƧou a ser tomado por edificaƧƵes destinadas ao armazenamento de mercadorias e ao comĆ©rcio. A ocupaĆ§Ć£o do entĆ£o Bairro da Praia ampliou-se consideravelmente, mas apenas de forma linear e paralelo Ć  escarpa sem seguir pelo mar afora.

Durante os sĆ©culos XVI, XVII e XVIII foram realizados inĆŗmeros pequenos aterros, por ordens religiosas e particulares interessados em ganhar Ć”rea para armazenagem de mercadorias e, principalmente, pelo poder administrativo local. O ritmo mais acelerado dessas intervenƧƵes ocorre somente a partir do sĆ©culo XIX e, principalmente, no sĆ©culo XX, quando o bairro comercial assumiu os contornos atuais a partir de uma iniciativa do poder pĆŗblico.

Diferente do famoso mito grego da AtlĆ¢ntida que foi engolida pelo oceano, o ComĆ©rcio surgiu sobre o mar da BaĆ­a de Todos-os-Santos a partir de diversas intervenƧƵes humanas acumuladas durante sĆ©culos, em Ć©pocas pelas quais as questƵes ambientais nĆ£o eram tĆ£o levadas tĆ£o a sĆ©rio quanto hoje. Embora Salvador tenha deixado de ser capital do Brasil a partir de 1763 – posto assumido pelo Rio de Janeiro -, a cidade ainda mantinha posiĆ§Ć£o privilegiada no paĆ­s em relaĆ§Ć£o Ć s atividades de importaĆ§Ć£o e exportaĆ§Ć£o.

Entre 1810 e 1822, o governador D. Marcos Noronha e Brito, o 8Āŗ Conde dos Arcos, considerou indispensĆ”vel melhorar as condiƧƵes do porto, cujo terreno Ć quela altura tinha extensĆ£o entre a AlfĆ¢ndega (atual Ć”rea do Mercado Modelo) atĆ© a AssociaĆ§Ć£o Comercial. A ideia era construir de forma mais adequada um cais de atracaĆ§Ć£o, com uma ampla rua Ć  sua margem, repleta de edifĆ­cios que tivessem grandes gabaritos e que se destacassem pela qualidade de sua construĆ§Ć£o e arquitetura. Isso serviria de cartĆ£o de visita a quem chegasse a Salvador.

ā€œNo final do sĆ©culo XIX, o porto ainda era extremamente fragmentado, formado por uma sĆ©rie de cais particulares e com uma linha de costa extremamente irregular. Pelo menos 14 projetos de ampliaĆ§Ć£o foram elaborados sem que nenhum deles viesse a sair do papel ao longo desse perĆ­odo. Em 1891, contudo, o Governo Federal da RepĆŗblica recĆ©m-instalada autoriza a construĆ§Ć£o de docas no porto de Salvador, bem como a construĆ§Ć£o de um imenso aterro que faria surgir sobre o mar uma Ć”rea quase trĆŖs vezes maior que o bairro atĆ© entĆ£o existenteā€, acrescenta Andrade.

O feito teria como protagonista o polĆ­tico baiano Joaquim JosĆ© Seabra. Ele ocupou o MinistĆ©rio do Interior e da JustiƧa (1902-1906, na presidĆŖncia de Rodrigues Alves) e o MinistĆ©rio da ViaĆ§Ć£o e Obras PĆŗblicas (1910-1912, na presidĆŖncia do Marechal Hermes da Fonseca), alĆ©m de assumir o Governo do Estado da Bahia em duas gestƵes (1912-1916 e 1920-1924).

O grande aterro

Sob a batuta de Seabra, a partir de 1906, teve inĆ­cio o processo de maior aterro sobre a baĆ­a, saindo mais ou menos do limite onde fica hoje a Rua Miguel Calmon atĆ© o atual Porto de Salvador, na Avenida da FranƧa. A ampliaĆ§Ć£o deu origem ao parque das naƧƵes – daĆ­ o porquĆŖ o nome das novas vias construĆ­das Ć  Ć©poca terem nomes de paĆ­ses.

A partir da dĆ©cada de 1920, a regiĆ£o ganhou seu maior aterro, muito superior a todos os anteriores, o que rompeu com a dinĆ¢mica prĆ³xima do mar e inseriu nova tipologia arquitetĆ“nica ao ComĆ©rcio. O prĆ³prio aspecto urbano do bairro Ć© uma prova disso.

Na Ć”rea que foi aterrada a partir do governo Seabra dĆ” para notar prĆ©dios mais modernos, a exemplo do Instituto do Cacau e do edifĆ­cio dos Correios. As ruas tambĆ©m sĆ£o mais largas e retas em comparaĆ§Ć£o Ć s que ficam prĆ³ximas Ć  encosta que abriga o Elevador Lacerda – estas mais estreitas e tortuosas.

Em 2009, o Instituto do PatrimĆ“nio HistĆ³rico e ArtĆ­stico Nacional (Iphan) aprovou o tombamento de parte da Ć”rea do ComĆ©rcio a fim de possibilitar que sejam preservadas caracterĆ­sticas importantes. O polĆ­gono de proteĆ§Ć£o do conjunto arquitetĆ“nico, urbanĆ­stico e paisagĆ­stico vai desde o quebra-mar da Capitania dos Portos atĆ© a regiĆ£o do Pilar, passando pelo Mercado Modelo e Cais do Ouro, limitando-se entre a Rua Miguel Calmon, Avenida Jequitaia e a encosta que separa a Cidade Baixa da Cidade Alta.

O ComĆ©rcio foi o primeiro bairro de negĆ³cios organizado do paĆ­s e teve protagonismo absoluto neste segmento dentro da prĆ³pria cidade atĆ© a dĆ©cada de 1970, quando a capital baiana passou por um processo de descentralizaĆ§Ć£o com a criaĆ§Ć£o do Centro Administrativo da Bahia (CAB) e expansĆ£o da regiĆ£o do Iguatemi e Avenida Tancredo Neves.

Contudo, ainda nos tempos atuais, o local sintetiza bem a essĆŖncia de Salvador, misturando ares de modernidade com edifĆ­cios que se tornaram marcos da arquitetura moderna, mas tambĆ©m resguardando histĆ³ria, patrimĆ“nio e fĆ©, com espaƧos pĆŗblicos, monumentos, casarƵes e igrejas centenĆ”rias.

ExposiĆ§Ć£o

A exposiĆ§Ć£o sobre aterros que culminaram na criaĆ§Ć£o do ComĆ©rcio pode ser encontrada no primeiro andar da Casa das HistĆ³rias de Salvador (CHS). Sob a curadoria do arquiteto e urbanista Nivaldo Andrade, a mostra traz textos e fotografias que retratam os avanƧos do desenvolvimento da cidade sobre as Ć”guas de KirimurĆŖ (grande mar interior), nome original da BaĆ­a de Todos-os-Santos dado pelos tupinambĆ”s antes da chegada dos portugueses.

Do acervo, um dos registros que mais chamam atenĆ§Ć£o Ć© um mapa bastante didĆ”tico sobre os oito ciclos de aterros feitos no ComĆ©rcio com base nos estudos feitos por Marcus Paraguassu. O prĆ³prio casarĆ£o que abriga o espaƧo cultural, aliĆ”s, entra no contexto das transformaƧƵes urbanas feitas ao longo desse processo.

“Acho muito importante a CHS ter um espaƧo para contar a histĆ³ria do bairro no qual ela se encontra, a partir do imĆ³vel que a abriga. Isso traz informaƧƵes pouco conhecidas – como o fato de que a maior parte do que hoje Ć© o ComĆ©rcio era mar – para um pĆŗblico amploā€, destaca Nivaldo Andrade.

“Quando construĆ­do entre 1860 e 1870, o edifĆ­cio da Casa das HistĆ³rias ficava situado Ć  margem da baĆ­a, ao longo do antigo cais. Hoje, pelos sucessivos trechos aterrados, estĆ” mais distante das Ć”guas, mas ainda assim guarda a memĆ³ria da metamorfose urbana e do patrimĆ“nio cultural do ComĆ©rcio”, acrescenta.

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